Peço desculpas aos meus colegas jornalistas, mas vou discordar: “Ne Zha 2” não é um case de soft power. Existe um muito maior neste ano, e vocês nem repararam – de tão “soft” que foi.
Para quem não está acompanhando, uma rápida recapitulação: a maior bilheteria do cinema mundial em 2025 é da animação chinesa “Ne Zha 2”, que, de acordo com o Box Office Mojo, arrecadou US$ 1,9 bilhão em todo o mundo. Algumas fontes falam em mais de US$ 2 bi.
Para vocês terem uma ideia, o segundo colocado é o live-action de “Lilo & Stitch”, com pouco mais de US$ 1 bilhão. Nenhuma outra produção alcançou essa marca mágica para a indústria.
➔ Leia também: Faz sentido a Netflix comprar a Warner Bros.?
O longa-metragem chinês conquistou um feito enorme, sim, mas foi basicamente doméstico. Do total, também segundo o Box Office Mojo, US$ 1,86 bilhão veio do mercado local. Reportagens de veículos como o Financial Times apontam que companhias chinesas estariam subsidiando ingressos ou organizando transporte em grupo para sessões de “Ne Zha 2”. Ao mesmo tempo, o China Digital Times informa que críticas online contra o filme estão sendo censuradas.
Enquanto isso, a arrecadação internacional foi ínfima, com alcance limitado – resultado de barreiras de distribuição e também culturais em relação ao Ocidente. Mesmo no Brasil, a animação estreou nos cinemas só no último fim de semana e arrecadou apenas R$ 329 mil, para um público de quase 15 mil pessoas, segundo a Comscore.
Acontece que “Ne Zha 2” é, na verdade, um grande exemplo de guerra cultural – eu abordei o assunto nas duas últimas semanas, na minha coluna no UOL. Com o filme, a China reafirmou seu poderio no entretenimento, mostrando autossuficiência em relação ao Ocidente – o que alimentou discursos como “China bate Hollywood” ou “animação chinesa ultrapassa filmes americanos”.
Tudo isso funciona como peça simbólica de que a China tem sua própria alternativa à hegemonia cultural dos EUA, o que é típico de uma guerra cultural: usar o cinema para consolidar identidade frente a narrativas externas.
No fim das contas, soft power exige que outros países queiram consumir e absorver essa cultura de forma espontânea, criando identificação. Sabe quem fez isso? “Guerreiras do K-Pop”.
A animação é um exemplo muito mais claro de influência cultural – no caso, da Coreia do Sul. O filme vai além dos convertidos, vendendo o K-Pop e, junto, a cultura coreana.

O resultado: a produção se tornou o filme mais popular da história da Netflix, com 325 milhões de views até a última atualização do ranking do streaming. Isso é gigantesco.
“Mas Renan, essa não é uma produção norte-americana?”. Sim, o longa foi realizado pela Sony Pictures Animation e distribuído pela Netflix, sem qualquer envolvimento estatal da Coreia do Sul. Mas é justamente aí que está a prova da força do soft power: a cultura sul-coreana ficou tão irresistível para o Ocidente que uma empresa americana se apoiou nela para criar seu maior sucesso, reforçando os pilares culturais do país oriental.
Agora, cabe à Netflix e à Sony não deixarem a peteca cair, ampliando a força de “Guerreiras do K-Pop” para além de um único filme, transformando-o em uma propriedade intelectual global.
Mas o K-Pop, esse já é um produto cultural consolidado no mundo – muito maior do que a cultura chinesa até aqui. E ainda assim, eu não duvidaria do que vem da China… uma hora eles emplacam algo equivalente.
Já Hollywood segue fazendo aquilo que sempre soube fazer bem: reciclar e reempacotar.